domingo, 4 de janeiro de 2009

todos os dias assistia a um mercado negro, no qual o sangue trocava gases com a linfa


Ouvi num documentário qualquer que é grande a probabilidade de termos tido um irmão gémeo durante a gestação. Mas sou pouco fiável, não acreditem em tudo o que respirem.




Com o olho direito semi-aberto vislumbro as pequenas ramificações de todos os vasos capilares da minha mãe, sigo o sangue apenas com ele, vejo o percurso infame de todo o líquido viscoso e de uma cor que pouca importância fazia para o contexto, uma vez que não se destacava naquela imensidão orgânica. Respiro inocentemente pelas minhas guelras temporárias;todos os dias assistia a um mercado negro, no qual o sangue trocava gases com a linfa , era uma festa ilegal da qual saía sempre beneficiada. Apenas só um olho tinha um pigmento de cor negro e por incrível que possa parecer era o único de qual usufruía.
Há medida que o tempo ia passando, não sei quanto - os relógios não faziam parte daquela forma de vida - a cor também atacou o outro, e passaram os dois a contemplar as felizes formigas sanguíneas de toda aquela promiscuidade medieval; era como se fossem duas beatas à porta da igreja, a ver quem entra e quem sai, com as glândulas salivares em trabalho esforçado para, no meio de muita água salivar, formarem os melhores boatos do mundo. E, foi aí que conheci o meu irmão gémeo e que pela primeira vez vi as asas de veludo que em passados recentes me tinham aquecido e recostado. Engatámos longas e filosóficas conversas. Ele já tinha vivido tudo e mais alguma coisa. Sempre me disse que a natureza me iria dar a oportunidade a mim de bandeja e a ele, iria mandá-lo para outro lugar. Perguntei-lhe incessantemente a razão das suas asas continuaram com ele, pelo que ele me respondia vivamente, “um dia compreenderás”. O espaço ia tornando-se ainda mais escasso, foi como se a mãe natural de todas as mães quisesse fazer ouvidos a todas as previsões que o outro corpo igual a mim fizera.
Tornaste-te igual a ele, mãe. Repugnas-me tanto porque não consegues encontrar um lado, porque preferes deixar tudo como sempre esteve, porque nunca tiveste iniciativa para mudar nem força para pensar sequer; Porque achas convictamente que o melhor para todos é aguentarmos o físico, que o mental acaba por arranjar qualquer coisa para se entreter. Enervas-me e enojas-me porque por muito que sintas que te sacrificaste por todos, ao fim e ao cabo não o fizeste por ninguém. Colocas a tua felicidade no mostrador de uma balança. Tão fútil é esse sonho e ignorante essa concretização. Para ti, tudo depende de uma simples operação, de uns simples quilos a menos, de uma dieta rigorosa e uma linha invejável. Achas que o amor começa nesse ponto.
Os meus braços aguentam com muita coisa, sozinhos. Não se podem queixar porque perdem mais facilmente a energia, e assim, toda ela fica concentrada só nos músculos. Estou a suar, mas nada importa, há que continuar esta caminhada sem sair do sitio e levar-nos a todos a todo o lado e a coisa nenhuma.
És macio irmão. Consigo ver-te bem lá do longe a sorrir-me e de asas atrás do peito, bem visíveis ao lado das orelhas, por cima dos ombros.

5 comentários:

David Pimenta disse...

gostei imenso do texto ;)
beijinho *

MafaldaMacedo disse...

uma autentica aventura duradoura e essencial.
Adorei o post o vocabulario cuidado só cativa os olhos a ler e ler anciando não chegar ao fim.
Beijinha

C. disse...

está muito bom! parabéns :)

Anónimo disse...

Tenho um desafio para ti no meu blog. Vai lá e confere!

Anónimo disse...

Mais um texto maravilhoso. Lindo. Beijinho